domingo, 20 de fevereiro de 2011

Sabina Anzuategui

1997, para Julia

(texto pouco revisado)

Em 1997 eu não estava mais grávida, fui expulsa do apartamento de uma estudante de enfermagem apaixonada por um cara casado e com AIDS, aluguei uma kitchinete para dividir com minha amiga coreana, trabalhava seis horas por dia revisando a digitação de portarias e leis e decretos sobre comércio exterior, escrevi muito no primeiro semestre, depois as idéias secaram e escrevi menos.

Em junho mandei alguns contos para um ex-professor e editor, Jiro Takahashi. Era um último fio de esperança, depois de ser ignorada num concurso da USP, e ouvir de uma professora amiga que "simplesmente não entendia o propósito" deles.

Algumas semanas depois, chegou uma carta de quatro páginas que talvez tenha mudado minha vida.

Ou, pelo menos, me deu ânimo para sobreviver uns 4 anos.

Alguns trechos de seu texto claro:

"De um modo bem abrangente, genérico, acho que você propõe - pode até ser sem querer - um tipo de texto radicalmente feminino jovem. (...) Por outro lado, penso que essa perspectiva em que seus contos avançam dificilmente vai fazer você ganhar concursos literários mais ou menos convencionais (embora eu espere estar errado quanto a isso)."

DÚVIDA: Será que eu havia mencionado o concurso da USP? A frase é uma resposta ou uma premonição?

Depois, sobre a primeira versão de O meu conto feminista:

"Incrível este texto do ponto de vista de sondagem e de expressão de uma alma. A gente acompanha uma viagem dentro de um ser que procura reagir diante de uma situação externa que o afeta profundamente. O último parágrafo daria inveja a muitas escritoras."

Lembro de escrever esse conto com extrema dificuldade, errando muito a coerência dos tempos verbais, depois de quase dois anos sem escrever nada de literatura.

Era diretamente inspirado em Lo que queda enterrado, de Carmen Martín Gaite, que eu havia lido num curso de Literatura Espanhola na FFLCH (de uma professora ótima, cujo nome esqueci).

Tentei encontrar nos meus arquivos a primeira versão do conto. Reescrevi várias vezes o último parágrafo, que nunca me parecia bom. Finalmente ele apareceu em Calcinha no varal assim:

"Mas não fiz o conto, não nesse dia. Levou muito mais tempo pra eu entender o que havia acontecido."

Até onde posso confiar em minha própria organização, a primeira versão dizia:

"Porque eu tinha que me libertar dele, por mais que doesse. O amor dele acabara e o meu, sozinho, só servia para me ferir. Me veio uma idéia, não lembro se foi ali, parada na janela, ou se foi depois quando fui ao banheiro e vi que a menstruação tinha descido: uma vontade de me reerguer, ser fria, forte, e escrever um conto feminista como as primeiras mulheres que lutaram sozinhas. Eu tive essa idéia e sentei de novo à máquina de escrever.

Mas não fiz o conto, não nesse dia. Demorou muito mais tempo pra eu entender: o que eu tinha feito da minha alma, eu mesma tinha feito."

Hoje acho muito estranho que eu tenha escrito "minha alma". Também me parece improvável que alguém elogiasse esse último parágrafo.

De todo modo (não percebi na época) a idéia de "me reerguer, ser fria, forte" é praticamente um resumo do último parágrafo de Perto do coração selvagem
 
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