sábado, 17 de março de 2012

Roberta Ferraz

1997,

Naquele documento só constava assim: 1997, desidratações. Há obviamente uma sequência de coisas intencionalmente deixadas para a inexistência tão crua deste ano. Precisei intercalar 1997 com outros dígitos, marolas de outros anos, e a memória derreteu-se para o magenta, para o abalone: é este anel em minhas mãos. Começo a chamá-lo: neste anel a concha já revelara a moça indefesa, viria depois a bruxa para só então, ser, antropomórfico como um minotauro e aí pairar desconhecido, com as cracas, num fundo de um rio. Venus Urânia, Venus Anadiomena: um pêndulo de hipnoses, é certo, aquele caminho: deixar os cabelos crescerem a partir daí. Sem escapatória. Abaixo da cintura. Cinturão de Órion, cravejado, nas mãos.

Toda história é onírica depois de 1997. É o que os 16 anos, quando são excessos, legam. O corpo-ardor, a corça-de-brumas, as cidades-surrealistas, o amor como uma primeira identidade, primeira caricatura, a intimidade da encruzilhada. Caminho pelos campos de trigo? Chamo os lobos da estepe? Moro numa casa de vidro? Quantos peixes no aquário? Estou perto do coração selvagem? Noites na taverna. Noites na taverna. Você acredita na metempsicose? A disposição elástica do corpo contagiava todas as palavras. As palavras estavam em todos os corpos. Os corvos ao pé da cama. Mapas astrais numa fita cassete, indo e vindo, através do futuro, ainda claro e estrangeiro. Calor obsessivo em Ribeirão Preto, e tantos manuais de trigonometria ou guloseimas alquímicas de eletricidade, nunca entendidos, eu ficava à janela. Quando, o azul-e-branco? Cavalgando demais, Toronto, Toronto o alazão das minhas coxas, nu e potro sob a minha velocidade. Na casa, aquela que era eu seguia abrindo janelas. O equilíbrio exato dos segredos. Na casa, faziam a mesma festa, quando do outro lado nenhum olhar me vigiava, o jardim. Cartas e fitas gravadas, música o dia inteiro. How beautiful could a being be? Rapte-me camaleoa. Adapte-me. Adolescente ruído que já era encruzilhada sem dedos. Disse três vezes. O ritual espontâneo da palavra. Em 1997 começa-se a dizer. Tudo tão a grito, o carmim da cruz, para lá, para cá? Vertigem alcoólica, escoriações. A próxima identidade.

Toronto morreria dali a pouco. Uma amiga que não vê, todos os dias. Literatura. Excitação pela busca da comida. Nas brumas leves das manhãs que vêm de dentro. Disposição elástica do corpo: frenesi e feriado. Patins pela ladeira da avenida do gás. Nó de rosa, dar a volta no mundo, com o berimbau e a Bahia. Inocências como jacintos. Duas daquelas flores no asfalto. Explodindo a Avenida Portugal. Palíndromos: moradas. Repetições, repetições – muda o registro (é o aro que eu tento impôr, daqui de fora). Ah, que ilusão! Uma fita cassete que me leva de 1997 a 2009 para então se afundar num leito de rio, de palavras, de silenciosas frestas. Um orelhão numa praça vazia da cidade mais vazia do interior. A repulsa ao jardim, o soro de hóstias, o cinema que arregaça fugas. O sono: ninguém teria culpa. Mas quem saberia disso antes de 2010. Antes de 2009. Estivemos quantos anos neste banho de água parada? E o sol quarando nossas roupas no varal. Afasto o calor. Pela memória. Não me admira que 1997 queira dizer-se como carta póstuma, (desculpe, não há mais fotografias) queimada ao acaso junto com outros papeis desimportantes. Este anel em minhas mãos, as minhas mãos no fundo de um rio. Magenta-verde, arder de um rosa vívido, quantidade elétrica dos sonhos e dos esquecimentos.

Agora já não me resta nenhum orgulho, só o sabor de me saber sido intensamente jovem contigo. (apêndice)

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